A minha afronta

17.9.16 -


Tem uns vídeos de quando tenho quatro anos de idade recém completos. Eu escrevo cartões pros coleguinhas da creche. De natal. A mãe vai ditando algumas letras, que não sei, eu conto que uma guria -a Manoela, talvez a Beatriz - rasgou outra cartinha com desenho que eu havia feito uns dias antes. É o primeiro registro de algo que se repetiu anos e anos depois: a testa apertada, os olhos compenetrados, as respostas das perguntas feitas pela mãe sempre no ar, atrasadas, mal digeridas. Eu entregava envelopinhos com letras garrafais meio rasurados mirando acertar a consideração dos amiguinhos da escola; eu hoje não faço muito diferente: embora não exista mais o capricho dos livrinhos com folhas que eu inventava no comércio dos meus pais enquanto eles trabalhavam, ainda existe em mim uma inocência de querer comover e ferir, impressionar e sensibilizar. A única diferença é que hoje eu afronto o mundo - e os ex-coleguinhas, e as garotas populares da escola e os familiares não tão benquistos nesse espaço aberto sem destinatário ou remetentes próprios. Ninguém mais despedaça algo onde, como todo esmero, escrevi algumas palavras; eu é que às vezes picoto e caricaturo algumas dores ou amadurecimentos para ver se facilito o riso.

Também fui convidada para escrever o discurso de formatura do nível B. Chorei compulsivamente enquanto o declamava pois, mesmo sendo a mais alta da turma toda, em questão de emoção eu também fazia questão de conseguir acompanhar o tamanho todo daquilo que estava transcrito de forma garrafal na folhinha. Depois, na oitava série, mesmo sendo uma jovem rebelde e um tanto quanto low profile, apresentei umas boas frases costuradas para o professor de Matemática que, encantado, colocou na roda para votação - que foi mais um embate com a galera que se pensava inteligentão porque tirava nota 9 em quase todas as matérias. A unanimidade fez alguns chorarem na tal passagem para o Ensino Médio - não por já imaginarem a chatice dos hidrocarbonetos, mitocôndrias e inércia e força que viriam por aí, mas sim pelo toquinho de leve que pincei no coraçãozinho até mesmo de rapagões altos e com os hormônios em ebulição. Foi ali que comecei a pensar que essa coisa de ortografar sentimentos talvez desse bola, pé e algum sentido para mim.

De forma tímida, enclausurada e diária, pegava minhas tardes de jovem criaturinha pra rabiscar uns poemas ao som de Los Hermanos aí por 2007 e 2008. Montei um blog para uma melhor contagem. Comecei a ser descoberta. Logo, escrevia opiniões e reproduzia redações do último ano do colégio. Quando vi, estava imersa a uma carga de energia capaz de descer um santo que me fazia escutar boas melodias, filtrar observações e adentrar o campo dos afetos todos como uma amazona disposta a vencer a próxima etapa, a prova seguinte, qualquer obstáculo onde ser uma menina, moça, mulher que escreve precisa provar sempre que seu valor é maior e seu conhecimento, mais vasto que aparenta. É uma forma de orgulho conseguir exprimir e receber essa entidade feminina que carrega um megafone e fala as verdades todas que muitas engasgam por aí. É um prazer decorar as falas, me utilizar de diversos figurinos e transgredir o não-dito pelas gurias que em mim confiam. Uma dádiva.

Toda vez que alguma menina ou me para na rua, ou envia uma cartinha para minha casa, ou simplesmente me manda uma mensagem fofa pelo Facebook e me chama de escritora, meus dedos petrificam por alguns minutos; um pouco por não saberem qual a rota mais simples para uma resposta decente e à altura, outro tanto por lembrar de Woolf, Mansfield, Nin, Fagundes Telles e um zilhão de outras mulheres que se lançaram à literatura, publicaram livros, contos, poemas, ensaios e honraram, de forma heroica, o que se pode chamar de escrita. Como eu, que rabisco umas ideias, releio com uma dor desumana e publico uma vez em que outra, misturadas com postagens sobre música e estilo (próprio, pessoal, o meu) posso não me sentir nua, imprópria e farsante num mesmo patamar onde umas moças bem mais jeitosas e esforçadas estão? Não, não, me nego. O dia que autografar algo físico, receber abraços e beijos e corar enquanto ouço alguns elogios, quem sabe.

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